Reflexões a partir do filme Dias Perfeitos
No filme Dias Perfeitos, acompanhamos Hirayama, zelador de banheiros públicos de Tóquio que, em meio a uma rotina pacífica e metódica, encontra prazer em hobbies como leitura, música e fotografia. Sua vida simples nos oferece uma sensação de calma, mas também desperta inquietação, levando-nos a questionar o que significa encontrar paz em um mundo que demanda movimento constante.
Para o diretor Wim Wenders, o filme é uma ode à paz e uma crítica ao modelo de progresso ininterrupto que predomina no mundo atual. Países e empresas estão obcecados por crescimento contínuo, e Wenders questiona os efeitos dessa busca incessante, que, segundo ele, gera desigualdade e descontentamento. Hirayama, em contraste, encontra pequenas revelações em seu dia a dia, capturando a poesia do cotidiano em momentos de trocas afetivas e na luz que ele registra com sua câmera analógica.
Perfect Days is as close as I ever got to making a statement on peace. For me, one of the big conditions of peace is being content with what you have. One of the big troubles with peace is that our countries and economies are addicted to growth. Growth creates wars. Growth creates inequality. Growth creates those who cannot grow, as opposed to those who always want to continue to grow. Growth is a huge obstacle to peace. Our economists do not like to hear that. They don’t want to hear that we shouldn’t be happy with what we have and try to share it instead of growing more. Growing more is only possible at the expense of others who will grow less, and that’s the reason for most wars. Hirayama is a real peacemaker. He’s my first real peace hero…well, except for the angels in Wings of Desire.
Hirayama se conecta silenciosamente com as pessoas ao seu redor: o homem que dança na avenida, uma árvore que ele abraça, uma criança sozinha no banheiro ou uma jovem que almoça solitária na praça. Contudo, para além da contemplação das coisas simples, o filme pode ser visto por outro viés: sua apreciação por tecnologias antigas e isolamento também pode refletir sua desconexão com o presente. O filme vai além da celebração da rotina, questionando a escolha de Hirayama em se isolar. Esse afastamento, em certo sentido, sugere uma fuga do passado, dos conflitos, do diálogo e relutância em acolher o novo.
Esse aspecto ressoa em um debate mais amplo: a busca pela desaceleração ou pela estagnação do crescimento em cenários de precariedade material. Em uma sociedade marcada por desigualdades profundas, o “não crescer” proposto na entrevista por Wenders pode parecer um privilégio ou até uma imposição problemática. Muitos ainda necessitam de “crescimento” para superar condições precárias, especialmente nas regiões menos desenvolvidas. No contexto ambiental e social, essa discussão se acirra há muitas décadas — enquanto países desenvolvidos defendem a limitação do crescimento para a preservação ambiental, países em desenvolvimento argumentam que as nações ricas, responsáveis por grande parte da degradação ambiental, devem assumir também o compromisso de corrigir essas desigualdades.
Essa reflexão também pode ser feita no nível individual. Nem todos podem se dar ao luxo de uma rotina contemplativa e desvinculada das pressões materiais, especialmente em contextos de extrema necessidade, onde o acúmulo e o mérito são vitais para a sobrevivência econômica e simbólica dos individuos. Dias Perfeitos não apenas celebra o ordinário, mas também provoca a reflexão sobre os desafios de ir além dele, confrontando as tensões entre uma vida tranquila e a necessidade de se engajar com questões urgentes do presente para a construção de um futuro.
Por trás de uma narrativa e estética comoventes, o filme nos leva a considerar como podemos valorizar a beleza do presente e, simultaneamente, pensar no que está por vir. Mesmo com a funcionalidade e a limpeza dos banheiros públicos como um exemplo a se seguir, outras violências e desconfortos ainda existem, tanto no nível individual quanto coletivo. Fechar-se em si permite a contemplação da cidade e do outro, mas não abre espaço para o novo, que só emerge por meio de construções coletivas, diálogo e pelo desconforto com a realidade.
Em tempos de crise climática, contemplar o céu e suas novas cores ainda é possível, mas, sem ação coletiva, essa contemplação pode se transformar em um mero vislumbre de algo que logo deixará de existir. Dias Perfeitos é, portanto, um convite para que, em meio ao caos urbano, encontremos serenidade, mas que não nos acomodemos ao ponto de ignorar as mudanças e os desafios que exigem resposta e engajamento real. Como a obra ganha vida própria, ouso discordar do diretor: o filme não é sobre paz, mas sobre violências e desigualdades que podem ser ignoradas pelo isolamento da própria rotina.