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O filme de Justin Kurzel revela como discursos extremistas se estruturam e se fortalecem, mobilizando afetos e justificando a exclusão e a violência.

Inspirado em eventos reais, o filme A Ordem, dirigido por Justin Kurzel, retrata uma investigação policial de 1983 sobre um grupo de supremacistas brancos neonazistas que planeja derrubar o governo dos Estados Unidos. Ao longo do filme, podemos acompanhar pequenos e grandes eventos que contribuem para a coesão social do grupo em torno de discursos discriminatórios, excludentes e violentos.

Levando em consideração o aumento dos movimentos extremistas e a ascensão da extrema-direita no mundo — como evidenciado pelos dados eleitorais recentes da Alemanha — , um dos aspectos mais relevantes do filme para os dias atuais é a forma como o grupo “A Ordem” mobiliza afetos em torno de temas como trabalho, renda, reconhecimento e família.

De acordo com Michael Sandel, em sociedades marcadas pela desigualdade, insegurança social e poucas oportunidades de crescimento econômico — devido a fatores da própria economia — , muitas pessoas sentem que não são valorizadas como trabalhadoras ou como contribuintes para o bem comum. Esse sentimento de exclusão pode gerar ressentimentos explorados por grupos extremistas, que constroem sua identidade e coesão a partir da exclusão de outros sujeitos e grupos.

Quando se associa, por exemplo, a violência e o desemprego à chegada de imigrantes e refugiados, sem discutir fatores da economia e da segurança pública, abre-se espaço para fundamentalismos raciais, religiosos e outros. Esses movimentos instrumentalizam a ideia de um inimigo interno para se fortalecer, alimentando preconceitos e promovendo discursos que justificam a violência ou a intervenção do Estado. Eles mobilizam o que Foucault chamou de “racismo de Estado”, ferramenta que divide a sociedade ao submeter um grupo a outro. O racismo de Estado possui uma função subjetiva — mobiliza afetos e alimenta delírios paranóicos de perseguição e missão — e uma função objetiva — utiliza a ideologia da suposta pureza racial para excluir e exterminar aqueles que não pertencem ao grupo. Nesse contexto, o “vírus”, a “praga”, não viriam de fora, mas estariam dentro da própria sociedade, devendo ser eliminados. Mulheres que desafiam papéis tradicionais, pessoas LGBTQIA+, imigrantes e refugiados tornam-se alvos constantes, vistos como desestabilizadores que devem ser reprimidos — muitas vezes com violência.

Essas dinâmicas ganham ainda mais espaço em contextos específicos de crise e insegurança. Se as relações econômicas, sociais e políticas não são compreendidas pela população — ou se suas causas são propositalmente abafadas — , respostas autoritárias ou transcendentais, como líderes messiânicos ou soluções baseadas no uso da força, tendem a ganhar maior adesão.

Nesse sentido, para fortalecer a promoção dos direitos humanos e da democracia, é fundamental refletir sobre quais necessidades esses grupos buscam suprir e quais lacunas tentam ocupar na sociedade. Não basta tratar o crescimento desses movimentos apenas como um problema moral ou de falta de caráter. Ainda que sejam moralmente condenáveis, é essencial compreender as condições que permitem seu crescimento para combatê-los de maneira eficaz e ampliar os discursos em defesa dos direitos fundamentais.

Outro traço típico de movimentos fascistas, evidenciado no filme e que merece atenção na contemporaneidade, é o culto à autoridade do líder e à violência. Esses movimentos exaltam figuras que se colocam acima da lei, do Estado e das instituições, incentivando uma visão militarizada da sociedade. Para eles, a ordem policial pode substituir a ordem social. Isso entra em conflito direto com a democracia, que exige diálogo e negociação, enquanto o autoritarismo se impõe pela força. Além disso, o fascismo se opõe à ideia de república, pois busca instaurar um regime em que a lei não se aplica a seus líderes, transformando a figura do governante na própria lei.

A exaltação da violência também é um elemento central desses movimentos. Não por acaso, regimes fascistas históricos adotaram símbolos de morte, como caveiras. Esses grupos promovem a força bruta e direcionam sua violência contra os mais vulnerabilizados. Isso pode se refletir não apenas em ataques diretos, mas também em políticas de negligência e omissão.

Por fim, outro ponto essencial para compreender os movimentos fascistas atuais — e que o filme evidencia — é que eles podem existir mesmo sem um governo fascista e não se restringem a um período histórico específico. O fascismo pode se manifestar como um movimento reacionário que atua dentro de diferentes sistemas políticos, incluindo democracias liberais. Como já discuti em textos anteriores, o fascismo pode ser entendido como a mobilização política de grupos autoritários e excludentes que usam o medo e a violência para fortalecer sua ideologia. O que o diferencia de outros movimentos políticos é sua natureza de massa, sua fusão entre ideologia e violência e sua capacidade de gerar tanto terror quanto consenso.

Para ler: O que é o fascismo? No segundo volume do Dicionário de Direitos Humanos do Redes de Direitos Humanos, abordamos o conceito de fascismo em sentido restrito e amplo. Acesse aqui.

Para ver: No vídeo Paradoxos da Universalidade dos Direitos Humanos, discuto o conceito de universalidade e seus paradoxos na modernidade, com base na obra de Costas Douzinas. Acesse aqui.