· 3 min de leitura

O Mal Não Existe

O filme “O Mal Não Existe”, dirigido por Ryusuke Hamaguchi, nos leva a refletir sobre procedimentos, ritos, diálogos e normas que seguimos sem qualquer materialidade ou propósito, em contraste com aqueles que trazem coesão, consciência e pertencimento. Os ritos podem esvaziar ou preencher.

Na fábula, há um descompasso claro entre os moradores da vila de Mizubiki, em Tóquio, e aqueles que chegam para construir um acampamento de “luxo” destinado a pessoas da cidade que buscam se conectar com a natureza. Eis o primeiro descompasso: em vez de vivenciar a natureza, os turistas se isolariam em cápsulas de conforto e luxo. O rito que se vende é sair da cidade e relaxar. Compra-se o rito, não o contato com a natureza ou a experiência prometida.

Os recém-chegados para apresentar o empreendimento à comunidade desconhecem a realidade da vila e não possuem autonomia para adaptar o projeto conforme as demandas da comunidade. Os problemas apresentados pelos moradores são levados ao dono do novo empreendimento pelos funcionários, por meio de uma reunião online, realizada de dentro de um carro. Entre múltiplos compromissos, ele apresenta fórmulas prontas para lidar com os questionamentos, mas que não levam a nenhuma resolução. São oferecidas soluções padronizadas de gestão de risco que mascaram a intenção oculta (ou explícita) de manter o que já estava estabelecido desde o início. O rito é cumprido e cumpre sua função.

Por outro lado, enquanto os ritos da cidade, do dono do empreendimento e dos funcionários são vazios, a rotina aparentemente calma da vila não é. Os ritos da comunidade trazem equilíbrio e coesão, revelando o contraste com a superficialidade das soluções propostas pela empresa. O rito da comunidade se confunde com o rito da natureza. Não sem intervenção. Como disse o líder da vila, todos intervimos na natureza; o grande desafio é manter o equilíbrio. Equilíbrio que é mantido por uma regra básica: o que acontece no alto afeta quem está embaixo. Se poluímos no topo do curso da água, quem está embaixo será afetado, mesmo que não tenha contribuído com a poluição.

Essa lição pode ser pensada no âmbito individual de um empreendimento e comunidade, mas também no contexto entre países. Se pensarmos na crise climática, a lição vem sendo defendida há anos pelo Sul Global: o crescimento desenfreado dos países do Norte Global nas últimas décadas afetou o Sul Global, mesmo que ele não tenha contribuído na mesma proporção. Trata-se do que chamo de soberania relacional. A autonomia de um Estado depende das circunstâncias históricas, políticas e econômicas, assim como das relações com outros Estados. Mesmo sendo reconhecido internacionalmente como soberano, o Estado que sofre o dano (poluição) não é livre para decidir como deseja ou planeja, já que a atuação de outro Estado poluidor limita suas condições de ação e as condições de vida de seus cidadãos. A autonomia de um Estado não depende exclusivamente de sua autoafirmação enquanto soberano e de sua ingerência no espaço territorial. O Estado não é soberano para agir como quiser, pois está condicionado pelas relações e ações de outros Estados e atores no âmbito internacional. Nenhum Estado é autossuficiente. O que acontece no topo afeta desproporcionalmente quem está embaixo.