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Encontros, Abandonos e Recomeços: Reflexões sobre Identidade e Reconhecimento em Caminhos Cruzados

O filme Caminhos Cruzados, de Levan Akin, é uma bela história sobre encontros, desencontros, identidade e empatia. Lia parte da Geórgia para a Turquia em busca de sua sobrinha, uma mulher trans que deixou a casa anos antes devido à não aceitação da família.

As burocracias que Lia encontra ao tentar atravessar a fronteira trazem a primeira reflexão do filme: documentos e estruturas que, ao invés de unir, separam comunidades muito semelhantes, quase idênticas, como destaca Achi, que acompanha Lia na viagem enquanto busca sua própria mãe.

Além das fronteiras burocráticas, as diferenças linguísticas poderiam ser uma barreira, se não fosse pelo afeto, empatia e humanidade — linguagens universais que conectam histórias, pessoas e sentimentos. Se os afetos são comuns nos dois países, as discriminações contra pessoas trans também o são, apesar de ambos os idiomas, georgiano e turco, não possuírem gênero.

Não é um filme sobre violência, mas sobre vivências, cotidiano e humanidade, apesar das violências, dos abandonos e das discriminações. É um filme repleto de detalhes, e gostaria de destacar dois pontos.

O primeiro ponto é a sensibilidade da organização local, que levanta uma questão fundamental: a sobrinha desaparecida quer ser encontrada? Qualquer ação voltada a pessoas sistematicamente vulnerabilizadas deve ser guiada por suas vontades, e não pelas dos outros. Um dos preceitos essenciais para quem atua em atendimentos de direitos humanos é garantir o respeito e o reconhecimento da pessoa que vivencia ou vivenciou situações de violência, assegurando, assim, sua autonomia e decisão.

Outro ponto igualmente importante são os laços familiares rompidos, os abandonos e os recomeços. O filme retrata histórias de pessoas que foram deixadas ou expulsas por suas famílias, mas que encontraram novas comunidades, autogestadas e solidárias. São histórias que se cruzam e se complementam.

As narrativas do filme são interessantes para refletir sobre as esferas de reconhecimento subjetivo (amor, direito e solidariedade) e as formas de desrespeito (violação, privação de direitos e degradação) desenvolvidas por Axel Honneth.

Para Honneth, o amor recebido na primeira infância pelos pais é a base da capacidade de amar a si mesmo e de desenvolver autoconfiança. A passagem da dependência absoluta da criança em relação aos pais para uma dependência relativa marca etapas decisivas para o desenvolvimento da habilidade de criar vínculos. Essa relação constitui o fundamento para todas as outras. Por isso, a proteção da infância é imprescindível para um desenvolvimento saudável. Relações de violência e desrespeito nesse período resultam na perda de confiança em si mesmo e no mundo. Além da relação entre pais e filhos, toda relação amorosa é essencial para as relações éticas, pois cria autoconfiança individual, indispensável para uma vida pública autônoma.

O direito, por sua vez, é também um padrão de reconhecimento intersubjetivo, que se concretiza quando o sujeito reconhece suas obrigações para com o outro e está intrinsecamente ligado às demais esferas, como o amor e a estima social. Esta última depende de valores compartilhados pela comunidade, bem como de qualidades e realizações individuais, que são expostas e reconhecidas nas relações sociais.

O direito é relacional e normativo, o que significa que nos reconhecemos como sujeitos de direito ao reconhecer o outro como igualmente sujeito de direito. É necessário reconhecer o valor universal da norma, que na era moderna não aceita mais privilégios, e a singularidade de cada pessoa, identificando todos como livres e iguais. Ser reconhecido significa a confirmação plena da identidade de um indivíduo por meio do reconhecimento de suas capacidades pelo outro.

Para determinados grupos e pessoas, a fuga muitas vezes se torna uma forma de acolhimento e pertencimento. Onde não há justiça e liberdade, torna-se impossível sustentar padrões de reconhecimento e formas de vida democráticas, com integrações sociais genuínas. A teoria de Honneth nos ajuda a entender como as esferas do amor, do direito e da solidariedade são determinantes para a vida do indivíduo, e como sua ausência pode desestabilizar a coletividade.

Em Caminhos Cruzados, a teoria do reconhecimento de Axel Honneth se reflete nas histórias das personagens. A busca de Lia por sua sobrinha, uma mulher trans que foi rejeitada pela família e pela comunidade, ilustra a falta de reconhecimento nas esferas do amor e da solidariedade. A ausência de aceitação e a violência simbólica rompem laços essenciais de autoconfiança e pertencimento. No entanto, ao longo do filme, vemos como as personagens, ao se conectarem com novas comunidades e afetos, buscam recuperar o reconhecimento familiar e comunitário negado, estabelecendo relações que respeitam sua identidade e autonomia.

O filme não apenas narra histórias individuais, mas também evidencia a importância do reconhecimento mútuo para a construção de vidas dignas e de uma sociedade mais justa e solidária.

Se quiser se aprofundar nos pontos tratados no texto, recomendo a leitura de A Luta por Reconhecimento, de Axel Honneth.

Para compreender as violências e violações relacionadas a gênero e identidade de gênero, sugiro os livros Problemas de Gênero e Discurso de Ódio, de Judith Butler.

Para questões sobre atendimento em direitos humanos, vale a leitura do material técnico Guia Básico de Atendimento em Direitos Humanos. Caso queira saber um pouco mais sobre conceitos de gênero e sexualidade, acesse a cartilha do SER-DH.

No site da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), você encontra cartilhas e manuais sobre os direitos de pessoas travestis e transexuais.